18 de julho de 2019
O contraditório do Ministério Público na resposta a acusação.

Com o advento da Lei n. 11.719/08, o Código de Processo Penal sofreu profundas alterações em relação ao procedimento que deve ser adotado nas ações penais de ritos ordinário e sumário, dentre as quais se destaca a necessidade de o acusado, após o recebimento da denúncia, apresentar resposta à acusação[1], nos termos do art. 396-A, do CPP.
Ofertada a peça defensiva, os autos devem ser remetidos ao juiz oficiante, que poderá: i) absolver o acusado sumariamente, se presente uma das hipóteses do art. 397 CPP; ou ii) dar seguimento à ação penal designando audiência de instrução, debates e julgamento, nos termos do art. 399 e seguintes do CPP. Nesse caso, surge uma questão interessante, mas ainda pouco discutida pelos Tribunais pátrios: quando o acusado apresenta defesa preliminar nas ações penais de ritos ordinário e sumário, os Magistrados têm determinado que os autos do processo sejam remetidos ao Ministério Público para que ele se manifeste sobre a peça defensiva e, feito isso, proferem sua decisão sem antes oportunizar nova vista à defesa. Será que isso é possível à luz do ordenamento jurídico brasileiro?
A resposta é eloquentemente negativa! Por dois motivos:
Primeiro porque, quando se permite ao Ministério Público se manifestar após a defesa, compromete-se o pleno exercício do contraditório (art. 5º, LV, CF), o qual, na visão do Supremo Tribunal Federal, “pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder, querendo, reagir à opinião do Parquet. Afinal, na lição velha e clássica de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, contraditório é a ‘ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los’, ou seja, ordem que implica possibilidade estrutural de realizar ações linguísticas ou reais de contradição, a título de reação regrada a ações de outra parte”[2].
No mesmo sentido é o
entendimento de Rogério Schietti Machado
Cruz, para quem o “acusado (…),
deve ter sempre assegurada a palavra por último (…) enquanto exteriorização
concreta do princípio do favor defensionis. Isso porque, considerando-se a ação
penal em sua inteireza, e não apenas em suas fases procedimentais estanques, o
acusado estará sempre na posição defensiva, rebatendo a imputação que lhe foi
endereçada pelo órgão acusatório (…)”[3].
Em outras palavras, se o Ministério Público
rebate as teses suscitadas pela defesa em resposta à acusação, e, logo após, os
autos são remetidos ao Magistrado oficiante, sem que seja oportunizada nova
vista à defesa, o Parquet acaba falando por último e o acusado fica
impossibilitado de replicar as novas considerações feitas pelo órgão
acusatório, as quais, sem sombra de dúvidas, influenciarão o Magistrado na
decisão quanto ao recebimento da denúncia e eventual absolvição sumária do
acusado (art. 397 do CPP). Ou seja, além do contraditório, também se viola o
direito à ampla defesa.
[1] No decorrer deste artigo utilizaremos as expressões “resposta à acusação” e “defesa preliminar” como sinônimas da manifestação prevista no art. 396-A, do Código de Processo Penal. Es
[2] HC 87.926, Min. Cezar Peluso, DJe 24.04.2008.
[3] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas, 2002, p. 94-95.
Certamente não é esse o espírito da lei. Para chegar-se a tal conclusão, basta a simples leitura do Código de Processo Penal, que, em diversos dispositivos legais, deixa clara a ideia de que a defesa deve sempre falar por último. A título de exemplo: i) as testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa (art. 400 CPP); ii) é conferida vista dos autos ao Ministério Público e, só depois, à defesa, para requerer diligências complementares (art. 402 do CPP); iii) bem como para memoriais (art. 403, caput, CPP).
Portanto, quando o Ministério Público se manifesta sobre a resposta à acusação e o Magistrado não abre nova vista à defesa antes de apreciá-la, fulmina-se num só golpe o exercício do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF) , direitos fundamentais cuja violação, por si só, constitui causa de nulidade absoluta.
Não obstante, ocorre também o desrespeito ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), uma vez que o Código de Processo Penal não faz qualquer previsão de, nos ritos ordinário e sumário, o Ministério Público se manifestar sobre a resposta à acusação apresentada pelo acusado antes de ela ser apreciada pelo Juiz oficiante. Basta a leitura dos arts. 396-A e seguintes do CPP para chegar-se a essa conclusão. Inexiste qualquer previsão neste sentido. Aliás, foi por esse motivo que o Superior Tribunal de Justiça, em duas ocasiões[1], entendeu que tal prática, além de ser vedada, também constitui causa de nulidade absoluta.
No julgamento do HC n. 172.345, o Desembargador Convocado Celso Limongi deixou assentado em seu voto: “A manifestação do Ministério Público sobre a defesa preliminar – não prevista na legislação – é causa de nulidade processual (…). E isto, porque houve uma inversão processual, com afronta ao devido processo legal. E não importa se os fundamentos apontados pelo Ministério Público Federal influíram, ou não, na decisão do MM. Juiz de ratificar o recebimento da denúncia. Basta a inversão, com inoportuna manifestação do ‘Parquet’ para caracterizar a nulidade arguida”[2].
Na mesma linha, a Sexta Turma do STJ concedeu ordem de habeas corpus no HC n. 128.591, para desentranhar dos autos a manifestação ministerial, pois: “a não observância ao devido processo legal, na forma como previsto em lei, constitui ofensa ao preceito que veicula a norma de direito fundamental e, portanto, a nulidade que dai decorre jamais pode ser tida como meramente relativa. O desrespeito a direito fundamental tem por nota prejuízo ínsito e impossibilidade de convalidação”[3].
Em que pese a clareza e acuidade dos posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça, Guilherme de Souza Nucci sufraga entendimento diverso, no sentido de que, “antes de tomar eventual decisão absolutória, deve o magistrado determinar a oitiva do órgão acusatório, garantindo-se a aplicação do princípio do contraditório”[4], com fulcro no art. 409 CPP[5], aplicado por analogia aos ritos ordinário e sumário.
Com o devido respeito, esse argumento não prospera. A razão é simples: em 2008, o Código de Processo Penal passou por uma reforma drástica em relação ao seus procedimentos comum ordinário, sumário, e ainda, ao procedimento relativo aos procedimentos de competência do Tribunal do Júri.
Se o legislador realmente quisesse que, nos ritos ordinário e sumário, a exemplo
do que ocorre no procedimento do Júri, o Ministério Público se manifestasse
sobre as preliminares suscitadas pelo acusado na resposta à acusação, antes de
os autos irem para o Juiz oficiante, certamente tal previsão teria sido
incluída nos arts. 396-A e 397 do CPP, os quais foram alterados na mesma época
que o art. 409, do CPP[6].
Como isso não ocorreu, claro está que não era essa a intenção do legislador e,
por conseguinte, não há que se falar em aplicação analógica de referido
dispositivo legal. Persiste, portanto, a ofensa ao devido processo legal.
Nessa conformidade, têm-se as seguintes conclusões:
i) Nos ritos ordinário e sumário, quando a resposta à acusação é ofertada, deve ela ser prontamente apreciada pelo Magistrado oficiante, sem que antes haja intervenção do Ministério Público sobre a peça defensiva;
ii) Quando os autos são remetidos ao Ministério Público para que ele se manifeste sobre a resposta à acusação e, feito isso, o Magistrado profere decisão sem antes abrir nova vista à defesa, há violação ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF);
iii) E se fosse
aberta nova vista à defesa logo após o Ministério Público se manifestar sobre a
resposta à acusação, a nulidade estaria sanada? Não, pois, nessa hipótese,
muito embora o contraditório e a ampla defesa estejam sendo respeitados,
persiste a violação ao devido processo legal que, na visão do STJ, representa
causa de nulidade absoluta e, portanto, insanável.
[1] Essas foram as únicas decisões do col. STJ sobre o tema até a data em que este artigo foi publicado no Boletim do IBCCRIM, 12 de outubro de 2011.
[2] Desembargador Convocado Celso Limongi, Decisão Monocrática, Sexta Turma, DJe 19.08.2010.
[3] Min. Arnaldo Esteves Lima, votação unânime, Quinta Turma, DJe 01.03.2010. No mesmo sentido, ver os seguintes precedentes de Cortes Estaduais: TJPR, Apelação Criminal n. 718.667-4, Juiz Raul Vaz da Silva Portugal, DJPR 08.06.2011; TJDFT, HC 2010.00.011599-1, Des. Alfeu Machado, j. 16.09.2010.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 728. No mesmo sentido: TAVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4ª edição. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010, p. 695 e; CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 539, no entanto, com a seguinte ressalva: “Se o juiz abre vista para a acusação se manifestar sobre documento juntado pela defesa, não poderá sentenciar logo em seguida (RT 650/279), pois a prerrogativa de falar por último constitui, para a defesa, manifestação natural da amplitude garantida pela Constituição, razão pela qual seu desatendimento importa em nulidade absoluta do feito (RT 615/348)”.
[5] Art. 409 CPP: “Apresentada a defesa, o Juiz ouvirá o Ministério Público ou o Querelante sobre preliminares e documentos em 05 (cinco) dias”.
[6] Quando se diz que esses dispositivos foram alterados na mesma época, na verdade, a intenção é dizer que a modificação ocorreu na mesma reforma processual, no caso, em 2008.
Em que pese a clareza e acuidade dos posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça, Guilherme de Souza Nucci sufraga entendimento diverso, no sentido de que, “antes de tomar eventual decisão absolutória, deve o magistrado determinar a oitiva do órgão acusatório, garantindo-se a aplicação do princípio do contraditório”[1], com fulcro no art. 409 CPP[2], aplicado por analogia aos ritos ordinário e sumário.
Com o devido respeito, esse argumento não prospera. A razão é simples: em 2008, o Código de Processo Penal passou por uma reforma drástica em relação ao seus procedimentos comum ordinário, sumário, e ainda, ao procedimento relativo aos procedimentos de competência do Tribunal do Júri.
Se o legislador realmente quisesse que, nos ritos ordinário e sumário, a exemplo
do que ocorre no procedimento do Júri, o Ministério Público se manifestasse
sobre as preliminares suscitadas pelo acusado na resposta à acusação, antes de
os autos irem para o Juiz oficiante, certamente tal previsão teria sido
incluída nos arts. 396-A e 397 do CPP, os quais foram alterados na mesma época
que o art. 409, do CPP[3].
Como isso não ocorreu, claro está que não era essa a intenção do legislador e,
por conseguinte, não há que se falar em aplicação analógica de referido
dispositivo legal. Persiste, portanto, a ofensa ao devido processo legal.
Nessa conformidade, têm-se as seguintes conclusões:
i) Nos ritos ordinário e sumário, quando a resposta à acusação é ofertada, deve ela ser prontamente apreciada pelo Magistrado oficiante, sem que antes haja intervenção do Ministério Público sobre a peça defensiva;
ii) Quando os autos são remetidos ao Ministério Público para que ele se manifeste sobre a resposta à acusação e, feito isso, o Magistrado profere decisão sem antes abrir nova vista à defesa, há violação ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF);
iii) E se fosse
aberta nova vista à defesa logo após o Ministério Público se manifestar sobre a
resposta à acusação, a nulidade estaria sanada? Não, pois, nessa hipótese,
muito embora o contraditório e a ampla defesa estejam sendo respeitados,
persiste a violação ao devido processo legal que, na visão do STJ, representa
causa de nulidade absoluta e, portanto, insanável.
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 728. No mesmo sentido: TAVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4ª edição. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010, p. 695 e; CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 539, no entanto, com a seguinte ressalva: “Se o juiz abre vista para a acusação se manifestar sobre documento juntado pela defesa, não poderá sentenciar logo em seguida (RT 650/279), pois a prerrogativa de falar por último constitui, para a defesa, manifestação natural da amplitude garantida pela Constituição, razão pela qual seu desatendimento importa em nulidade absoluta do feito (RT 615/348)”.
[2] Art. 409 CPP: “Apresentada a defesa, o Juiz ouvirá o Ministério Público ou o Querelante sobre preliminares e documentos em 05 (cinco) dias”.
[3] Quando se diz que esses dispositivos foram alterados na mesma época, na verdade, a intenção é dizer que a modificação ocorreu na mesma reforma processual, no caso, em 2008.